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Formado em Direito na Ufrgs, Germano Weschenfelder, 27 anos, deixou um estágio na sua área de formação em 2018 para trabalhar como motorista da plataforma Uber de transporte de passageiros por aplicativos. “Trabalho dez horas por dia, faço R$ 200,00, com carro próprio”. As plataformas precisam reajustar as tarifas, que estão congeladas há 6 anos, ele reivindica. “Nosso trabalho é bem árduo, com longas jornadas e recebemos pouco. Mal dá para pagar as contas. Dez horas por dia é muito puxado”, relata.
Quando começou a operar no Brasil, em meados de 2014, a norte-americana Uber, criada em 2009 pelos engenheiros Travis Kalanick e Garrett Camp, em São Francisco, Califórnia, prometia ganhos de até R$ 7 mil por mês e sintetizava um sonho de independência acalentado por milhões de trabalhadores. Afinal, quem não aspira ser dono do seu próprio negócio e estabelecer as suas próprias condições, horários e jornada de trabalho?
Para fazer sobrar algo em torno de um salário mínimo no final do mês, a maioria não cumpre menos de 10 horas de trabalho diário atualmente. Isso se o motorista for dono do veículo. Já para os cerca de 50% da categoria que alugam carros, o custo adicional com a locação não baixa de R$ 400,00.
Já para as empresas, o esquema funciona. Nesta quarta-feira, 12, a Uber valia US$ 82,58 bilhões na Bolsa de Valores de Nova York (Nyse). Isso em um cenário de queda: as ações da plataforma seguiram desvalorizando 2,09% até às 16h, com acumulado de -4,52% no pregão. Em maio de 2019, quando estreiou na Bolsa, a empresa perdeu em apenas dois pregões um total de US$ 13 bilhões em valor de mercado.
Ou seja, mesmo depois do tombo e de manter um desempenho ruim, o valor de mercado da Uber é mais de 80 vezes superior ao do “unicórnio” brasileiro fundado pelos engenheiros brasileiros Ariel Lambrecht, Renato Freitas e Paulo Verasa, em 2012, a 99 Pop, sua principal concorrente.
Alternativa de ocupação e renda
Para os motoristas vinculados à plataforma ao redor do mundo, a Uber representa, de fato, alternativa de emprego e renda. No Brasil, passou a acolher milhares de excluídos do mercado de trabalho formal em um cenário de crise econômica.
A estimativa mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que em 2019, nada menos que 4 milhões de brasileiros entraram nessa atividade, a maioria na informalidade e cerca de 1,1 milhão cadastrados como microempreendedor individual (MEI).
De acordo com a Pesquisa Nacional de Empregados e Desempregados (Pnad), indicador do IBGE que identifica as características socioeconômicas, no final de 2012, o país tinha 484 mil pessoas cuja principal fonte de renda eram serviços de transporte por aplicativo. Em 2019, esse contingente já superava 1 milhão de motoristas, um aumento de 137,6% em oito anos.
Um levantamento feito pelo Instituto Locomotiva entre os dias 12 e 19 de março, com base nos parâmetros da Pnad mostrou que um contingente adicional de 11,4 milhões de brasileiros recorreu aos aplicativos para garantir uma parcela ou a totalidade de sua renda.
Com esse crescimento, o país tem hoje aproximadamente 20% de sua população adulta, ou 32,4 milhões de pessoas, que utilizam algum tipo de app para trabalhar. Em fevereiro do ano passado, antes do início da pandemia de covid-19, eram 13%. As ferramentas de transporte, como Uber e 99 foram utilizadas por 28% daqueles que acessaram os aplicativos para obter trabalho ou renda.
Em 2016, o gaúcho Antônio Carlos, de 48 anos, por exemplo, largou o emprego de 13 anos em uma terceirizada que atuava dentro do Banco Central e do Banco do Brasil e trancou o curso de Administração na faculdade para trabalhar como motorista vinculado às plataformas Cabify, Uber e Pop.
Ele conta que normalmente trabalha de oito a dez horas por dia, cinco dias por semana e fatura, mesmo com a crise gerada pela pandemia, entre R$ 2,8 mil e 3,2 mil líquidos, com carro próprio.
“As condições de trabalho a gente precisa melhorar no sentido da remuneração dos aplicativos, de as plataformas aumentarem o nosso ganho por corrida, por quilometragem”, observa, lembrando que os custos com combustível e manutenção do veículo não param de aumentar, enquanto a remuneração está congelada por anos e ainda sofre quedas com as promoções.
- “Faço horário comercial, não abro mão dos finais de semana, diferente de muitos colegas que ficam longe da família durante muito tempo”, reconhece Antônio Carlos, que se considera “mais um microempresário, que tem que trabalhar para poder ganhar”.
Trabalho em excesso e adoecimento
A maioria desses trabalhadores, no entanto, subsiste em condições precárias, sendo constantemente submetida a jornadas superiores a 12 horas diárias, adoecimento, baixo faturamento, falta de perspectiva, segurança zero. Bem diferente do sonho americano disseminado mundo afora pela Uber nos seus primórdios.
Em março do ano passado, o motorista Marcos Roberto Martins Freitas, 52 anos, deixou o hospital após dois meses de internação devido aos ferimentos que sofreu em um acidente de trânsito em Porto Alegre. Ele relatou ao Extra Classe que estava dirigindo quando teve uma parada cardíaca, bateu o carro e, ao ser socorrido pela Samu teve mais três paradas em sequência. Freitas contou que chegava a cumprir jornadas de até 17 horas por dia como motorista de aplicativo e se alimentava apenas com lanches rápidos para não perder corridas.
Para a massa de condutores, o que sobra no final do mês não passa de um salário mínimo – sem direito a férias, 13º salário ou proteção social. Qual é, afinal, a natureza dessa relação dos motoristas com as plataformas? “Somos força de trabalho. Trabalhadores. As empresas têm o melhor dos dois mundos. Não pagam nossos direitos e nos exploram como se fossemos empregados”, resume Weschenfelder.
Custos da uberização
O questionamento sobre a uberização do trabalho, as longas jornadas, baixa remuneração e tipificação das relações desses trabalhadores com as empresas que exploram o transporte de passageiros por aplicativos foi parar no judiciário trabalhista e no legislativo.
Na próxima terça-feira, 18, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) no Rio Grande do Sul fará uma audiência de mediação entre as empresas Cabify e Uber e seus motoristas, na busca de uma solução para os impasses trabalhistas.
O Sindicato dos Trabalhadores de Aplicativos (Simtrapli-RS) protocolou junto ao TRT4 um pedido de reajuste de 42% na remuneração básica do serviço.
Em Porto Alegre a frota tem cerca de 25 mil condutores e aproximadamente 10 mil atuam na região metropolitana. Em 2015, o valor pago por quilômetro rodado aos motoristas era de R$ 1,25.
Atualmente, os aplicativos pagam R$ 0,95 na capital e R$ 0,90 na Região Metropolitana. No início havia um desconto de 25% nas corridas. Agora o percentual de desconto varia entre 25% e 40%. Ou seja, os custos aumentaram, mas a remuneração dos motoristas caiu, ressalta Carina Trindade, secretária-geral do Simtrapli-RS.
No caso da Cabify, o que está na mesa de negociação são as indenizações e compensações da empresa a seus trabalhadores, já que a multinacional espanhola anunciou o encerramento das atividades no Brasil a partir de 14 de junho, explica o advogado do Simtrapli, Antônio Escosteguy Castro.
Justiça do trabalho
Na primeira mediação, realizada em março, após duas greves de motoristas, o juiz Joe Ernando Deszuta, da 7ª Turma Julgadora e na Seção de Dissídios Coletivos do TRT4 sinalizou que a competência para debater a relação de condutores com as plataformas que exploram o transporte de passageiros por aplicativos pertence à justiça do trabalho.
O judiciário entende que o vínculo entre as partes está mais próximo de uma relação de trabalho do que comercial. Decisões nesse sentido têm reconhecido o vínculo trabalhista pelo país.
Em uma decisão inédita sobre a matéria no final de abril, o TRT15, Campinas, São Paulo, se recusou a homologar um acordo entre a Uber e um motorista.
Por unanimidade, os integrantes da 6ª Turma viram no acordo – que seria fechado faltando um dia para o julgamento do processo trabalhista movido pelo trabalhador uma tentativa de fraude por parte da empresa.
Os representantes das plataformas resistem em reconhecer os motoristas como uma categoria de trabalhadores.
Hiperexploração de mão de obra
“Entregadores e motoristas por aplicativos, dizem essas megaempresas de aplicativos, seriam donos do seu próprio negócio. E isso é uma grande mentira. Eles não são donos de negócio nenhum. São empregados desses aplicativos, têm um tipo de trabalho e emprego diferente do emprego tradicional pela CLT, mas nós precisamos regular esse contrato de trabalho. A maioria não quer um contrato idêntico à CLT, porque eles têm muitas vezes múltiplos empregadores, se ligam a diversas plataformas”, contesta o deputado gaúcho Henrique Fontana (PT).
Autor de um projeto que propõe regras contratuais mínimas para os condutores e entregadores de mercadorias, com garantia de proteção social e inclusão na Previdência Social, mas sem vínculo trabalhista, o parlamentar chama atenção sobre a excessiva jornada de trabalho e a precarização da atividade.
“O aviltamento desse trabalho está levando pessoas que trabalham às vezes, dez, 12 horas por dia, 30 dias por mês, a ganhar um salário mínimo. Nós estamos chegando num nível de precarização, de hiperexploração do trabalho desses motoristas e entregadores por aplicativo que é insuportável. Este trabalho é um trabalho dos tempos atuais e nós temos que votar algo na Câmara Federal para regular e melhorar as condições desses trabalhadores”, disse Fontana em pronunciamento na tribuna da Câmara no final de abril. O projeto aguarda parecer na comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (Cdeics).
Fonte: Extra Classe
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